Haru Nemuri no SXSW 2022 / por Adam Kissick
O South by Southwest é um dos maiores festivais dos Estados Unidos e muitas vezes tachado como o maior evento do mundo focado em economia criativa. Ele movimenta anualmente, segundo seus próprios realizadores, cerca de $300 milhões (mais de R$1.5 bilhão) na economia de Austin/Texas. Criado em 1987 como uma mistura de festival de música e conferência de comunicação, o SXSW manteve o foco na música durante seus primeiros anos e promoveu centenas de shows e palestras relacionadas ao mercado musical nesse período. A partir de 1994 o festival passou a dedicar parte de sua programação ao cinema e à tecnologia – temas que ganharam mais espaço e se destacaram no SXSW nos anos seguintes. Mesmo assim, o festival seguiu produzindo literalmente milhares de shows todos os anos: a edição de 2001 bateu a marca de mais de mil artistas se apresentando e, dez anos depois, esse número chegaria a 2.098 showcases em uma única edição, até alcançar o incrível número de 2.371 artistas se apresentando em 2014.
Em 2023, no entanto, foram outros números que chamaram a atenção. O Umaw, um sindicato de músicos e trabalhadores do mercado da música dos Estados Unidos, trouxe à tona os valores pagos pelo SXSW aos artistas que se apresentam no evento:
há mais de 10 anos, artistas solo recebem $100 e bandas recebem $250.
Isso, quando optam por receber o pagamento em dinheiro, já que uma das opções é receber uma pulseira para ter acesso à programação musical do SXSW no lugar do cachê (para os artistas internacionais, que em 2022 constituíram 1/3 da programação, além de terem que arcar com todos os custos de logística e vistos, a única forma de remuneração possível é a pulseira de acesso ao evento).
Os ingressos para o festival não são nada baratos. A pulseira que dá acesso a toda a programação musical custa $995 e o ingresso mais completo, com acesso a todo o evento, sai por $1.995 (na cotação do momento no qual este texto é escrito, o equivalente a R$10.468). Em 2022, o público total do SXSW foi de 278 mil pessoas, sendo que mais de 134 mil compareceram a algum dos shows realizados pelos 1.504 artistas na programação (veja a frequência dividida por áreas).
Para concorrer a uma vaga no SXSW, bandas e artistas precisaram pagar uma taxa de inscrição de $55. Em 2022, foram recebidas 5.001 inscrições, o que rendeu ao SXSW $275.055 pagos pelos próprios artistas. Foram selecionadas 1.504 propostas, sendo que 1.099 eram dos EUA e, portanto, eram as únicas que poderiam receber cachês em dinheiro. Dentre esses 1.099, apenas 128 optaram por receber o pagamento em dinheiro em vez da pulseira de acesso ao evento,
o que significa que artistas de todo o mundo pagaram $275.055 ao festival e somente $32.000 (no máximo, considerando que todos tivessem recebido o valor de $250) foi efetivamente pago aos artistas que se apresentaram
(o cálculo, também feito pela Umaw, é baseado em informações oficiais do SXSW e Axios). Em 2023, mais de 1.400 artistas estão na programação musical, como as bandas brasileiras Tuyo e Bike.
As demandas do Umaw e dos artistas que questionam as práticas do SXSW se concentram em quatro pontos:
1. aumentar o cachê para no mínimo $750 para todos os artistas (e destacam que esse valor ainda é inferior ao preço do ingresso mais barato para as atividades de música no festival).
2. incluir a pulseira de acesso ao evento em complemento ao cachê e não mais forçar artistas a escolherem entre ser pagos ou poder participar do próprio evento em que irão tocar.
3. esse é essencial e de interesse de artistas do Brasil: oferecer aos artistas internacionais as mesmas condições que aos artistas dos EUA e, caso as bandas estrangeiras não possam receber pagamentos nos EUA devido aos seus vistos, que o festival converta a remuneração para reembolsar custos de logística.
4. não mais cobrar para que artistas se inscrevam para tentar tocar no SXSW.
Surfbort no SXSW 2022 / por Renee Dominguez
Um festival construído a partir da música, que movimenta centenas de milhões de dólares e tem público de centenas de milhares de pessoas, remunerar tão mal os artistas diz muito sobre a indústria musical e no que se tornou o SXSW. Outrora um espaço para descobrir bandas e filmes, assistir a shows alternativos, debater e refletir sobre música e artes, o SXSW perdeu parte de seu propósito para virar uma oportunidade de venda de espaço para empresas gigantes e de manutenção de desigualdades nas artes. Essa é uma prática replicada mundo afora, na qual oportunidades de visibilidade e de conexões junto a agentes influentes no mercado são reservadas às pessoas que já possuem recursos financeiros suficientes a ponto de poderem investir altas quantias para estarem presentes e abrir mão de cachês. É a manutenção de um sistema que explora artistas com a promessa da possibilidade de visibilidade futura, enquanto o verdadeiro negócio de milhões é a publicidade adjacente.
Em entrevista a uma rádio pública do Texas, uma artista local destacou que o que está acontecendo é basicamente a criação de oportunidades de networking exclusivas para as classes mais abastadas. E, para piorar, os alugueis em Austin estão cada vez mais caros, o que tem expulsado músicos para fora da cidade. Aqueles que foram a base do SXSW por anos agora estão cada vez mais afastados, literalmente.
Quase 10 anos atrás, o SXSW já era criticado pela presença massiva de marcas e, como destacado pela Billboard, já tinha deixado de ser “tão cool quanto era antes”. Em 2002, as bandas mineiras PexbaA, Valv e Radar Tantã foram as primeiras do Brasil a serem convidadas para o festival e registraram um pouco da fase ainda indie do evento em um documentário apresentado por Jeff Kaspar, um dos criadores da notória Motor Music (disponível abaixo em gloriosos 480px).
Para o público brasileiro (o maior entre os estrangeiros), a presença de Tábata Amaral na programação e Boca Rosa realizando a cobertura oficial do SXSW 2023 para o Itaú (um dos maiores patrocinadores desta edição, ao lado de marcas como Porshe, Volkswagen e Slack), deixam claro o atual perfil do evento. Em 2021, 50% do SXSW foi vendido para a Penske Media Corp, um conglomerado de comunicação que também é dono da Rolling Stone, Billboard, Indie Wire, Variety, Hollywood Reporter e dezenas de outras publicações (muitas delas, com matérias de destaque para o SXSW, enquanto outras participam ativamente do festival). A Penske Media recebeu $200 milhões de um fundo de investimentos ligado ao governo da Arábia Saudita em 2018, ano do assassinato de um jornalista a mando do príncipe saudita (dinheiro que, segundo o NY Times, ajudou a finalizar a compra da Rolling Stone em 2019 – Penske já tinha comprado 51% da marca dois anos antes). A bilionária família Penske também é apoiadora de Donald Trump, doadora de campanha de candidatos do Partido Republicano nos EUA e seu patriarca, Roger Penske, chegou a ser condecorado pelo próprio Trump na Casa Branca. Não surpreende que na programação das conferências do SXSW em 2023 estejam temas como “Do Brasil para o mundo: agronegócio conectado para salvar vidas” e “O futuro da reforma de imigração“, que tratará da “necessidade urgente de abordar a segurança nas fronteiras americanas”.
O discurso na superfície é de um encontro cosmopolita para debater soluções para o futuro a partir da tecnologia e suas interseções com diversas áreas. Mas em meio a debates e lançamentos artísticos relevantes, é importante observar ações que reforçam e disseminam conceitos e ideias que beneficiam determinados projetos políticos e comerciais, além de empresas buscando respaldo para atividades questionáveis. “True faith“, clássico do New Order, uma das principais atrações musicais do SXSW 2023, parece apropriada para o momento:
é possível que tenhamos ido longe demais
você tomou meu tempo e pegou meu dinheiro
e tenho medo que você tenha me largado esperando
em um mundo que exige tanto
notas
foto que abre a matéria é de show da Haru Nemuri no SXSW de 2022, feita por Adam Kissick.
segunda foto é do Surfbort, também no SXSW 2022, feita por Renee Dominguez.
[1] Essa matéria de 2012 já mostrava que na época os pagamentos aos artistas no SXSW eram os mesmos $100/$250 ou ingresso para o evento.
[2] No Instagram, a Umaw também conta sobre represálias que eles e parceiros sofreram após trazerem à tona a situação dos pagamentos dos artistas no SXSW.
[3] Matéria do New York Times conta como Jay Penske criou seu conglomerado de empresas de comunicação, parte delas compradas em baixa e em momentos de crise (o mesmo ocorrido com o SXSW, que quase faliu após ter que cancelar sua edição de 2020, no início da pandemia).
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adorei descobrir mais sobre o festival. o q sai nos outros sites enaltece sem crítica, só seguem o hype do dinheiro e se emocionam sem grandes análises.