Os grandes conglomerados do mercado de festivais

Eles são donos de grandes festivais e casas de shows e agenciam artistas pelo mundo. Porque isso é um problema

Separei três vídeos sobre o mercado de festivais de música e uma constante em todos são as consequências do crescente poder de grandes corporações como proprietárias desse tipo de evento. Dois dos vídeos são produzidos pelos veículos econômicos (e liberais) ingleses Financial Times e The Economist e são focados no mercado britânico, mas relevantes para refletir sobre o contexto mundial.

Live Nation e AEG são as maiores produtoras de shows do mundo e possuem dezenas de festivais. Juntas, elas são donas de 30% dos festivais britânicos com capacidade para mais de 5 mil pessoas (22,8% são da Live Nation e 6,2% da AEG).

São festivais de diversos tipos, aumentando a capilaridade dos interesses corporativos, sendo que alguns atuam em nichos semelhantes, facilitando negociações em lote. Na Europa, a AEG é dona de festivais como o “alternativo” All Points East, em Londres, que em 2022 teve entre suas principais atrações Kraftwerk, Nick Cave, Tame Impala, Idles, The Smile e Mogwai, e o francês Rock En Seine, que este ano teve headliners como Kraftwerk, Nick Cave, Tame Impala, Idles e Arctic Monkey (reparou algo?). Nos Estados Unidos, possuem dezenas de festivais, entre eles o gigante Coachella, um dos festivais de maior bilheteria no mundo, além de mais de 100 casas de shows e teatros. Já a Live Nation, além de dezenas de festivais espalhados pela América do Norte, América do Sul, Europa, Oceania e Ásia (Lollapalooza, Download, Creamfields, Isle of Wight, Pinkpop, Bonnaroo e Austin City Limits são algumas de suas marcas no ramo), também gerencia turnês de artistas gigantes como Beyonce, Madonna, Harry Styles, Coldplay e Kendrick Lamar e nomes mais alternativos, de Metric a Kamasi Washington.

Não é preciso muito esforço para perceber que vários artistas se repetem nos festivais de propriedade de um mesmo grupo. Como possuem muitos festivais de música pelo mundo, casas de shows e controlam as agendas de artistas de sucesso global, usam seu poder econômico para negociar grandes nomes, fechar contratos de exclusividade e controlar preços no mercado. Para ampliar seus lucros, uma empresa como a Live Nation pode fazer com que um artista que esteja extremamente popular e seja um de seus agenciados se apresente apenas nos festivais de sua propriedade e cobrar valores absurdos dos concorrentes. Da mesma forma, a empresa possui força suficiente para “bombar” artificialmente novos artistas que sejam de seu interesse, incluindo-o em seus grandes festivais e abrindo apresentações em suas casas de show, influenciando o mercado conforme seus interesses. Um verdadeiro sonho para as antigas gravadoras.

Cláusulas de exclusividade que impedem shows de um artista numa mesma cidade durante determinado período são comuns, mas em alguns contratos, o Coachella impedia artistas de se apresentarem em qualquer outro festival nos Estados Unidos ou mesmo em shows solo no sul da Califórnia durante um período de 6 meses (vide último vídeo no fim da tela).

Em 2019, Gabi Ruiz, co-fundador do festival Primavera Sound, disse em entrevista que o festival espanhol havia sido parcialmente vendido (29%) para um fundo de investimentos americano para se “proteger dos tubarões dos festivais“. Ele foi claro ao citar as já mencionadas Live Nation e AEG. “É o modelo mais agressivo (da Live Nation). Chegaram em cidades onde já havia festivais e os fizeram desaparecer. O programador é uma espécie em extinção”, disse. Outra resposta de Ruiz explicita o modelo de atuação dessas “incorporadoras de festivais”:

“Eles nos explicaram seus modelos, que são modelos de supermercado, onde tudo é feito igual para ir em busca de redução de gastos e aumento de lucros. Capitalismo, o que me parece ok, mas nossa singularidade foi comprometida. O Primavera Sound não é um festival super lucrativo nesse sentido: quanto mais você quer se diferenciar, mais complicações você tem nessa economia de escala para dar a eles os benefícios que eles esperam.”

Gabi Ruiz, Primavera Sound, ao jornal El Periodico

Coincidentemente, a empresa responsável por trazer o Primavera Sound às Américas em 2022 é… a Live Nation. ¯\_(ツ)_/¯

Com maior dificuldade em contratar artistas de grande porte, festivais independentes (aqueles que não fazem parte de corporações e não são nomeados conforme seus patrocinadores) passaram a buscar outras formas de se diferenciar, migrando para elementos conceituais e relacionados à experiência do público. Segundo estudo da Association of Independent Festivals que analisou eventos no período entre 2008 e 2018, headliners dos festivais eram um fator decisivo de compra de ingressos para apenas 8% do público no Reino Unido. A música tem perdido espaço como principal atrativo nos festivais e estes passam a exercer maior atração por fatores aspiracionais do público. Frequentar um festival de pessoas vestidas de formas elaboradas, considerado engajado em questões sociais, que misture artistas clássicos com descobertas alternativas, reflete a vontade das pessoas em serem vistas dessa forma, como perspicazes, diferenciadas e que equilibrem a contestação de normas sociais tidas como ultrapassadas ao mesmo tempo em que se vinculam aos códigos valorizados atualmente dentro de seus grupos de convívio. É a diferenciação por meio de experiências que somente um grupo limitado de pessoas pode ter (os frequentadores de determinado festival).

Antes da digitalização da música, os shows eram uma forma de divulgar os discos. A venda de música gravada em suportes físicos (discos, fitas, CDs) era a maior fonte de renda no mercado musical. No século 21, a música ao vivo é a principal fonte de renda de grande parte dos artistas e a música gravada muitas vezes é vista mais como estímulo para a venda de ingressos do que como gerador de receita direta. E, como os shows se tornaram mais importantes, os cachês também subiram.

A The Economist faz uma comparação referente a valores de cachês de headliners. No Woodstock, em 1969, Jimi Hendrix recebeu um cachê equivalente a $125 mil. No Coachella de 2019, o cachê de Ariana Grande foi de $8 milhões, um aumento de 6.400% em 50 anos. Entre 1996 e 2018, o valor dos ingressos para shows subiu 190% nos Estados Unidos, frente a um aumento médio de 59% nos custos em geral para o consumidor durante o mesmo período.

O ingresso para o festival Glastonbury, o maior do Reino Unido e um dos maiores do mundo, custava £5 em 1979. Em 2019, foi vendido por £248, um aumento de 5.000%, enquanto a inflação britânica nesse intervalo de 40 anos foi de 500%, conforme dados do The Economist (em 2022 os ingressos para o festival custaram £280 e esgotaram).

notas

Alguns outros dados interessantes apresentados nos vídeos:

  • em 2019 foram realizados 975 festivais no Reino Unido. Eles geraram cerca de 85 mil empregos e movimentaram £1,76 bilhão (dados da AIF – Association of Independent Festivals).
  • um festival para 5 mil pessoas gera, em média, £1,1 milhão para a economia da cidade onde é realizado (no Reino Unido, também segundo a AIF).

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