quem financia a produção cultural

Sobre patrocínios e investimento em cultura

Para viabilizar atividades culturais, artistas e produtores podem contar com diversas fontes de financiamento, como venda de ingressos, recursos próprios, doações e patrocínios públicos e privados. Quando o público-alvo de uma marca já é atingido por um artista ou por determinado projeto cultural, vincular-se a essas atividades culturais é uma forma da empresa alcançar esse mercado. Para governos e instituições sem fins lucrativos, investir em cultura é um meio de reforçar conceitos de cidadania e responsabilidade social, enquanto para as empresas, é uma forma de agregar valor às suas criações e lucrar[1].

Conectar marcas não apenas a produtos é uma forma de inserir ideias e iconografia corporativa em um meio externo, de maneira que a própria cultura reflita como uma extensão da marca, conforme abordado por Naomi Klein no já clássico livro Sem Logo – a tirania das marcas em um planeta vendido. Esse processo dialoga com a potência da comunicação publicitária e “sua capacidade de se infiltrar primeiro na esfera sensorial, invadindo, por meio da sensibilidade, o imaginário e, consequentemente, o comportamento”, nas palavras do filósofo Franco Berardi.

Em Sem Logo, Klein aponta que foi durante a década de 1980, nos governos de Ronald Reagan (Estados Unidos) e Margaret Thatcher (Reino Unido), que os patrocínios culturais apresentaram um “crescimento explosivo” (na expressão utilizada por ela).

Naquele período, a redução de impostos teria resultado na erosão do orçamento para o setor público, levando instituições culturais a buscar financiamento no mercado por meio de patrocínios.

Quando o patrocínio decolou como substituto dos fundos públicos em meados da década de 1980, muitas empresas que tinham experimentado a prática deixaram de ver o patrocínio como um híbrido de filantropia e promoção de imagem e começaram a tratá-lo mais puramente como instrumento de marketing, e um dos mais eficazes.

À medida que seu valor promocional cresceu – e a dependência da receita de patrocínio aumentou no setor cultural – a delicada dinâmica entre patrocinadores e patrocinados começou a mudar, com muitas empresas tornando-se mais ambiciosas em suas exigências por maiores reconhecimento e controle, e até comprando os eventos completamente (pense também nos eventos que levam seus patrocinadores no nome, como Hollywood Rock, Tim Festival e Nos Primavera Sound – a edição portuguesa do Primavera Sound).

Marcelo Beraldo, diretor de conteúdo da T4F Time for Fun (maior produtora de eventos do Brasil e 16ª maior do mundo em 2019[2]), afirma que “música ao vivo no Brasil sem patrocínio é inviável, enquanto lá fora, em mercados mais maduros, ela se sustenta muito bem com venda de ingressos“. Beraldo se expressa a partir da perspectiva de um produtor de grandes eventos para dezenas de milhares de pessoas, como as edições sul-americanas do festival Lollapalooza e shows de artistas internacionais como Rolling Stones e Madonna, mas sua fala reflete a situação do mercado cultural brasileiro em geral. Conforme dados da Pesquisa de orçamentos familiares (POF) 2017-2018: perfil das despesas, divulgada em 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

a despesa média mensal por pessoa com lazer e viagens no Brasil entre 2017 e 2018 foi de apenas R$53,93. Desse valor, somente 17,59%, ou R$9,49, foi gasto com ingressos para eventos de entretenimento, esportivos e recreação.

No Brasil, recursos de empresas privadas, por meio de renúncias fiscais, são a principal fonte de financiamento de atividades culturais no país, em detrimento do investimento público na área (Machado et al., 2020). Na Europa, o cenário é diferente. Corroborando a fala de Beraldo, da T4F, produtores dos festivais Primavera Sound e Sónar, dois dos maiores e mais respeitados festivais europeus, afirmam que a venda de ingressos representa a maior parte da receita de ambos: 75% no caso do Sónar e 65% no caso do Primavera Sound, que, em 2017, teve o restante de sua receita dividido entre 20% oriundos do lucro da venda de comida e bebida e 15% de patrocinadores).

Em 2018, o investimento público em cultura no Brasil foi de R$9,1 bilhões, o equivalente a 0,48% do Produto Interno Bruto (PIB) e 0,21% do total de despesas consolidadas da administração pública (sendo que do total do investimento do governo em cultura no país, 51,4% tem origem nas administrações municipais). Nos países da União Europeia, a média de gastos em recreação, cultura e religião foi de 1,2% do PIB em 2019 – uma proporção 150% maior do que no Brasil. Com pouco investimento público e dependente da iniciativa privada, a sinergia entre empresas patrocinadoras e produtores culturais é essencial para a continuidade das atividades culturais no Brasil. É um cenário preocupante.

Distribuição de gastos da Secretaria de Cultura em 2021.

No Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2023, divulgado em agosto, o governo bolsonaro prevê R$1,1 bilhão para a Cultura, hoje uma secretaria dentro do Ministério do Turismo. Desse total, 41,01% será dedicado a custos administrativos e pagamento de pessoal, restando R$ 463 milhões para a pasta. Para efeito de comparação, no último ano do primeiro mandato da Presidenta Dilma, o orçamento do Ministério da Cultura era de R$3,26 bilhões em valores da época que, corrigidos, hoje seriam equivalentes a R$7,6 bilhões (cálculo feito no site do próprio Banco Central).

Ao lado, gráfico do Portal da Transparência com gastos da Secretaria da Cultura em 2021. De um orçamento total de R$1,69 bilhão naquele ano, foram executados somente R$ 620 milhões. Desse valor, 78,03% foi gasto com salários e custos administrativos do Governo e apenas 21,97% direcionado ao funcionamento de equipamentos culturais, fomento à cultura e preservação do patrimônio.

Como visam o lucro, as empresas podem patrocinar somente produções culturais que representem maior retorno para as corporações em detrimento de outras que possam ser igualmente importantes para a sociedade, mas resultem em menores resultados de marketing[3].

Festivais dedicados à nova MPB junto a grande nomes do gênero e hits do rap proliferam por todo país enquanto vertentes musicais ligadas à vanguarda ou historicamente relacionados a classes sociais mais baixas são deixados em segundo plano. Experimentações e obras conceituais, em geral vinculadas a públicos mais segmentados, são essenciais para o desenvolvimento das produções artísticas e constantemente “alimentam” o mainstream, que incorpora e transforma tendências surgidas em pequenas cenas. Sem o fomento a produções mais experimentais e que não estejam ligadas necessariamente às modas do momento, corre-se o risco de uma cena cultural menos diversa, pasteurizada e guiada principalmente pelos interesses econômicos.

É um modelo que também reforça as desigualdades na cultura, tanto em relação a profissionais da área como artistas. O acesso a empresas e demais patrocinadores privados é facilitado para pessoas que já estejam vinculadas a esse tipo de empreendimento, com contatos com pessoas em cargos de poder (leia-se pessoas brancas de classe média alta e ricas, em sua maioria homens[4]). Desigualdades do mercado de trabalho, então, refletem-se no acesso aos recursos de financiamento privado na cultura.

notas

imagem da capa: Portal da Transparência.

[1] Mais sobre o assunto em um curto capítulo escrito por Ricardo Ribenboim, entitulado Cultura e Responsabilidade Social, no livro Políticas Culturais vol.1, organizado por Leonardo Brant.

[2] Dados do ranking Worldwide ticket sales top 100 promoters, da Pollstar. Para efeito de comparação, a maior produtora de eventos de outro país de língua portuguesa presente no ranking é a Everything is new, de Portugal, na 75ª posição.

[3] É preciso levar em consideração outros ganhos potenciais para as empresas além dos financeiros, como diferenciação de seus concorrentes.

[4] O livro Culture Is Bad For You – Inequality in the cultural and creative industries, de Orian Brook, Dave O’Brien e Mark Taylor, é um estudo sobre a reprodução de desigualdades na produção cultural. Ele aborda como preconceitos ligados a classe social, gênero e raça influenciam as carreiras de profissionais da chamada economia criativa. O livro será analisado por aqui futuramente.

Outras referências:
Allen, P. (2007). Artist Management for the Music Business. Elsevier.

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