festivais de música: como chegamos até aqui?

Da 2ª Guerra Mundial, pirataria online e falta de perspectiva de futuro para os jovens à explosão mundial de festivais de música.

pt. 1 _ mercado da juventude

Tema recorrente na cultura pop, a juventude representa um importante nicho de mercado e que tem seu marco na primeira metade do século 20. A juventude simboliza o que está por vir, representa novos comportamentos, linguagens e influencia os hábitos de consumo. Em 1944, o termo teenager (adolescente) passou a ser utilizado por publicitários nos Estados Unidos para designar jovens com idade entre 14 e 18 anos, refletindo o recente poder de compra dessa faixa etária. Em A criação da juventude – como o conceito de teenage revolucionou o século XX, Jon Savage (2009) descreve a primeira onda de consumo por parte do público adolescente na década de 1920 e como essa cultura floresceu após a Segunda Guerra Mundial, junto do crescimento da influência exercida pelos Estados Unidos.

A revelação apocalíptica da Bomba Atômica precipitou um novo tipo de cons­cientização global e um novo tipo de psicologia. Diante da perspectiva da pulve­rização instantânea, muitas pessoas começaram a se concentrar totalmente no presente, senão no momento (…)

A nova psicologia – que logo seria culturalmente interpretada como existencialismo —privilegiava a vida em seu momento e era orientada para o materialismo. O velho mundo estava morto e o grupo mais bem situado para prosperar numa era pós-guerra incerta era o dos jovens – que sempre tinham sido conside­rados como os personificadores de um futuro auspicioso.
Savage, 2009, p.497

O cenário de reconstrução e de estímulo ao consumo no pós-guerra favorecia o marketing direcionado ao público jovem, conectado ao hedonismo consumista e à vontade de viver o momento.

Alguma semelhança com o período atual, pós-pandemia?

A primeira geração crescida na época da produção em massa já era vista como transformadora e com forte influência nas intenções de compra. Essa percepção se manteve ao longo das décadas.  Vindos na sequência dos baby boomers (nascidos entre os anos de 1940 e 1959) e da Geração X (pessoas nascidas entre 1960 e 1979)[1], os millennials (também chamados de Geração Y, constituída pelas pessoas nascidas entre 1981 e 1996[2]) se tornaram a maioria da população nas primeiras décadas do século 21 em países como os Estados Unidos e Brasil. Entre suas principais características está o alto potencial de influenciar o comportamento e as decisões de compra de seus grupos de relacionamento. Sua sucessora, a Geração Z, é considerada a geração dos nativos digitais, expostos à internet, redes sociais e dispositivos móveis de comunicação desde a infância. Assim como as demais gerações, o recorte temporal que define a Geração Z varia, muitas vezes abrangendo dos nascidos entre a metade dos anos 1990 até o fim da primeira década dos anos 2000: 1995 a 2010, no caso da McKinsey; 1997 a 2012, na classificação do Pew Research Center.

Os contextos nos quais cada geração está inserida variam, assim como o comportamento e formas de consumo. Baby boomers e a Geração X viveram sob o espectro da guerra (o pós-Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, respectivamente), enquanto millennials e Geração Z cresceram em um cenário marcado pela globalização. Ao longo das décadas é possível visualizar como os principais hábitos de consumo variam entre gerações.

Gráfico sobre gerações.
McKinsey & Company (2018).

Uma geração é constituída por pessoas de uma mesma faixa etária e que compartilham cenários econômicos, políticos, culturais e tecnológicos. Millennials e a Geração Z vivenciam configurações de mundo semelhantes, apesar de suas respectivas singularidades. Ambas as gerações são fortemente marcadas pela relação com a tecnologia, familiarizadas com a comunicação e o consumo online, a rápida troca de informações e a atuação como grandes criadoras de tendências.

Os millennials ascenderam em um contexto otimista e de crescimento econômico, de transição para uma economia e sociedade mais digitais, até a explosão da crise financeira de 2008 e a subsequente recessão. Esse cenário influenciou a geração que entrou no mercado de trabalho a partir da segunda década dos anos 2000.

Fatores como a automatização do trabalho e a diminuição do estado de bem-estar social pelo mundo[3] teriam sido relevantes para tornar os millennials na primeira geração da era moderna a ter um padrão de vida pior do que o de seus pais.

Nesse contexto, a economia do compartilhamento floresce com o consumo se dando por meio do acesso aos bens e não necessariamente por sua posse. Enquanto no pós-guerra os baby boomers tinham como uma de suas características o consumo exacerbado – utilizado também como meio para uma potencial inclusão social – e a Geração X consumia em busca de status e de reforçar sua individualidade, os millennials passaram a se diferenciar pelo consumo de experiências.

Dando sequência aos millennials, a Geração Z passou a valorizar também o significado das experiências de consumo, destacando a ética, a singularidade e o acesso em contraponto à posse. Chegamos, portanto, a um recorte do jovem nas primeiras décadas do século 21, formado por millennials e membros da Geração Z, que valoriza experiências singulares, éticas e acessíveis, em busca de relações de troca que tenham significado além do utilitário e que reflitam seus ideais. Um cenário, como veremos, propício para o florescimento de festivais musicais.

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pt. 2 _ festivais de música no séc. 21

Em Depois do futuro (2019), o filósofo Franco Berardi escreve que “para que a transmissão cultural possa ocorrer, é necessário encontrar a linguagem que traduza as formas da cultura moderna, alfabética, crítica, para as formas das gerações pós-alfabéticas”. No relatório Millennials with money (2018), a consultoria Edelman traduz uma percepção semelhante para o meio mercadológico ao afirmar que “como acontece sempre que uma geração envelhece em um mercado, as organizações que atendem a esse mercado precisarão ajustar suas premissas, comunicações e até mesmo suas operações”. As exigências por parte dos jovens do século 21 por empresas mais responsáveis e engajadas na busca por melhorias sociais confluiu com a ascensão da Geração X aos cargos de poder nas corporações, resultando em maior abertura para a diversidade, conforme previsto ainda nos anos 1990 por pesquisadores de consumo no livro Rocking the ages: The Yankelovich Report on Generational Marketing:

Os membros da Geração X estão partindo hoje para atitudes pluralistas que são as mais fortes que já medimos. Uma estimativa para os próximos 20 anos deixa clara que a aceitação de estilos alternativos de vida se tornará cada vez mais forte e mais disseminada à medida que a Geração X crescer e assumir os centros do poder, e tornar-se o grupo de compra dominante no mercado consumidor (…)

Diversidade é o fato mais importante da vida da Geração X, a essência da perspectiva que trazem ao mercado. Diversidade em todas as suas formas – cultural, política, sexual, racial, social – é a marca de sua geração.
Smith & Clurman, 1997, como citado por Klein, 2000, p.135

Festivais de música são vetores da cultura jovem e apresentaram vertiginoso crescimento no século 21. Desde o início dos anos 2000, enquanto a música em formato digital se popularizava, sua venda em suportes físicos diminuía constantemente. Dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), mostram que entre 2001 e 2019, a venda global de música em suportes físicos (CDs e vinis, por exemplo) caiu de $22,9 bilhões para $4,4 bilhões. A receita do mercado de música gravada, como um todo, também diminuiu no período, saindo de $23,4 bilhões em 2001 para uma mínima de $14 bilhões em 2014, até apresentar crescimento contínuo de 2015 a 2019, quando apresentou receita de $20,2 bilhões, também segundo dados da IFPI (vide gráfico abaixo). Comparando os dados da indústria de 2001 e 2019, enquanto a venda de música em suportes físicos caiu 80%, o mercado global de música gravada teve redução de apenas 13% (considerando as outras fontes de receita desse mercado, como streaming, direitos de execução e downloads).

Receita global da indústria fonográfica - 2001 a 2019
IFPI – Global Music Report (2020).

No livro Como a música ficou grátis – o fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria, o jornalista Stephen Witt (2005) relata o surgimento do mp3 até sua popularização nos anos 2000. Witt destaca a teoria defendida por economistas de que o orçamento das pessoas direcionado ao entretenimento é relativamente estável, de forma que se os gastos com um item dentro dessa categoria diminuem, valor equivalente seria direcionado para outra fonte também de entretenimento.

Ou seja, se os gastos com a compra de CDs diminuíam, o valor excedente seria gasto com outras fontes de entretenimento.

“Apesar de terem abandonado os álbuns, os fãs começaram a comparecer em peso aos grandes festivais. Contando com diversos artistas populares, Bonnaroo, Coachella e outros representantes do circuito dos festivais eram o presságio de um tipo de Woodstock permanente”, escreve Witt. De 1999 a 2009, a venda de bilhetes para shows nos Estados Unidos mais do que triplicou, chegando ao ponto de, em 2011, a música ao vivo no país apresentar mais receita do que o mercado de música gravada pela primeira vez desde a invenção do fonógrafo, segundo o jornalista. No Reino Unido, os shows passaram a movimentar mais dinheiro do que a música gravada ainda antes, em 2008, conforme dados divulgados em 2010 pela PRS for Music (gestora de direitos autorais do Reino Unido que representa mais de 140 mil artistas). Uma mudança e tanto, considerando que em 2004 a receita com shows era menos da metade do que a gerada com música gravada no Reino Unido.

A receita do mercado global de música ao vivo (venda de ingressos somada aos patrocínios) chegou a $28,5 bilhões em 2019, líder no setor musical, frente a $18,6 bilhões de receita para a música digital (streaming e download) e $6,7 bilhões da venda de música em suportes físicos, conforme dados da PwC. Três anos antes, em 2016, a receita global do mercado da música ao vivo era de $25,6 bilhões.

Receita global da música - 2016 a 2025
PwC Global Entertainment & Media Outlook 2021-2025, Omdia (2021).

Segundo pesquisa realizada pela Nielsen nos Estados Unidos em 2015, maior mercado de música no mundo (dados da IFPI), millennials e a Geração Z constituem os grupos etários que mais gastam com música. E enquanto a média da população gasta 10% do orçamento dedicado ao consumo de música com festivais, na faixa etária entre 18 e 34 anos esse gasto é quase o dobro, na faixa de 17%, de acordo com a mesma pesquisa. Em 2019, outra pesquisa da Nielsen apontou o crescimento do público nos festivais nos EUA (com destaque para os millennials) e indicou que 52% da população do país frequentava eventos de música ao vivo anualmente. No Reino Unido a situação era parecida e pesquisa da Ticketmaster[4] indicou que 50% do público que frequentou festivais em 2019 tinha menos de 35 anos.

Esses dados vão ao encontro de uma das principais características dos jovens do início do século 21: a valorização das experiências. Em 2014, 78% dos millennials nos Estados Unidos diziam preferir gastar seu dinheiro com experiências do que na compra de produtos e 55% afirmavam estar gastando mais do que nunca com eventos. O gráfico abaixo, com dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, apresenta os gastos com eventos ao vivo no país acompanhado de marcos da geração millennial.

Participação em eventos e festivais de música
Departamento de Comércio dos Estados Unidos, Escritório de Análises Econômicas, Harris Poll (2014).

Ao longo da década o ímpeto por experiências parece ter diminuído, mas ainda permanece alto. Em 2020, 52% das pessoas entre 16 e 23 anos e 50% daquelas na faixa de 24 a 37 anos afirmaram preferir gastar com experiências, segundo pesquisa em nível mundial realizada pela Global Web Index. No Brasil, pesquisa encomendada pela Mastercard e publicada em 2021 apontou que 68% da população do país acima de 18 anos preferia  experiências a bens materiais.

Os números dos festivais confirmam o apetite pelas aglomerações em torno da música ao vivo. Criado em 1999, o Coachella é um festival realizado anualmente na região desértica de mesmo nome, na Califórnia. Sua primeira edição teve público de 25 mil pessoas e um prejuízo de $750 mil (o que contribuiu para que sua segunda edição não fosse promovida logo no ano seguinte). O festival voltou a ser realizado em 2001 e, desde 2004, todas as suas edições tiveram público de mais de 100 mil pessoas (além de desde 2010 vender todos os ingressos disponíveis, às vezes em poucos minutos). A partir de 2012, quando foi criado o ranking da Pollstar com os festivais de maior bilheteria no mundo (em termos de arrecadação), o Coachella liderou todas as edições exceto em 2016[5], chegando ao recorde de $114.593.000 com a venda de 250 mil bilhetes em 2017 (a primeira vez que um festival recorrente obteve mais de $100 milhões somente com bilheteria). Entre os festivais que integram o ranking da Pollstar também se destaca a versão brasileira do Lollapalooza, realizada anualmente desde 2012 em São Paulo, com a segunda maior bilheteria do mundo em 2018 ($23.3 milhões e mais de 300 mil ingressos vendidos).

Apesar de não divulgar publicamente sua receita com venda de ingressos e não constar no ranking da Pollstar, é possível estimar que o festival Primavera Sound também tenha uma das maiores receitas do mundo. Sua edição de 2019 teve público de 220 mil pessoas, sendo 63 mil delas reunidas em um único dia, um recorde até então para o festival, com bilhetes à venda a partir de €80 (no caso de um único dia de evento), até €400 (o pacote para todos os dias na categoria VIP). Em sua primeira edição pós-pandemia e comemorando 20 anos de festival, o Primavera Sound de 2022 em Barcelona foi a maior edição da história do evento. Ao todo, seu público foi de quase 450 mil pessoas[6] e, segundo seus organizadores, movimentou €349 milhões em Barcelona.

Em 2018, o mercado global de festivais de música era estimado em $3,5 bilhões, segundo a Festicket. Em sua publicação Festival Insights 2018, a empresa, especialista na venda de pacotes que incluem bilhetes, transporte e hospedagem para festivais ao redor do planeta, destacava o crescimento desse tipo de evento em relação ao ano anterior em alguns países europeus, como Portugal (127%), Espanha (132%), Bélgica (120%) e Holanda (104%). No material, indicavam que os festivais representavam uma  experiência em alta entre o público e que o gasto médio nesses eventos era de €167. Dois anos antes, em 2016, pesquisa da Eventbrite, outra empresa do ramo de venda de ingressos para eventos, divulgou que na América do Norte o gasto médio individual em festivais era de $117 entre os frequentadores esporádicos e de $208 entre aqueles que participavam de cinco ou mais festivais anualmente (grupo que correspondia a 20% do total de frequentadores).

Em 2022, ano que marca o retorno dos eventos, estimativas otimistas são de que a receita global de música ao vivo seja de quase $21 bilhões. Em seu informativo de resultados do segundo semestre de 2022, a Live Nation, maior promotora de eventos do mundo, anunciou ter vendido mais de 100 milhões de ingressos para shows este ano – mais do que toda a quantidade vendida em 2019, movimentando $4,4 bilhões.

notas

imagem da capa: Inka & Niklas.

[1] Recortes etários utilizados pela consultoria McKinsey no artigo True Gen’: Generation Z and its implications for companies.

[2] O recorte temporal que define os millennials varia. Instituições como a APA – American Psychological Association e o Pew Research Center utilizam o período entre 1981 e 1996, enquanto outros autores podem variar entre o período que vai de 1980 ao início dos anos 2000. A consultoria McKinsey utiliza o período entre 1980 e 1994. Já o pesquisador Neil Howe, considerado o criador da expressão “Geração millennial” e autor de livros sobre o assunto, utiliza o período entre 1982 e 2004 como definidor da Geração Y. The Millennial Generation, “Keep Calm and Carry On” (Part 6 of 7).

[3] Destacam-se, também, reformas trabalhistas e desregulamentação de mercados que afetam as políticas de pleno emprego, aumentando a instabilidade e insegurança principalmente dos jovens que estão no início de suas carreiras. O tema é aprofundado por Bessant et al. em The precarious generation: a political economy of young people (2017).

[4] A Ticketmaster é uma empresa de venda de ingressos, parte do mesmo grupo que a Live Nation, maior produtora de eventos do mundo segundo a Pollstar. Pesquisa State of play: festivals UK, realizada online com 10.901 participantes em abril de 2019.

[5] Nesse ano o pódio ficou com outro festival da mesma produtora responsável pelo Coachella, o Desert Trip, evento de edição única que reuniu Bob Dylan, The Rolling Stones, Neil Young, Paul McCartney, The Who e Roger Waters, também no deserto da Califórnia. O Desert Trip arrecadou $160.1 milhões de bilheteria. Boxoffice insider: Pollstar’s top 20 festivals over half a decade.

[6] A conta feita pelos realizadores do festival não representa a quantidade única de pessoas, mas sim a soma do comparecimento em todos os dias de festival: 220.500 no primeiro fim de semana de Primavera Sound (66.000 + 74.000 + 80.500), 40.200 no Primavera a la Ciutat (shows em casas noturnas espalhadas pela cidade) e 240.000 no segundo fim de semana (79.000 + 81.000 + 80.000).


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