O marketing, maroto, transforma em lucro o hate online e pode estimular conflitos propositais
“O ódio é o mais acessível e o mais abrangente de todos os elementos unificadores”. Encontro essa citação em um dos meus antigos diários e acho perfeita para a introdução deste artigo. Se, no caso original, Eric Hoffer escrevia sobre fanatismo e o surgimento de movimentos de massa no cenário pós-Segunda Guerra Mundial, eu trago a questão para o contexto cultural dentro de um mercado transformado pela quantidade e velocidade das informações online e pela busca por diferenciação em um mundo que parece se fragmentar, cada vez mais rápido, impulsionado pela busca incessante por lucro. O marketing é parte essencial nesse processo.
São várias as definições encontradas para a palavra “marketing”. Em geral, convergem para a forma como as empresas constroem valor para os clientes. A American Marketing Association revisa sua definição de marketing periodicamente e, em sua publicação de 2017, o define como “a atividade, conjunto de ações e processos para criar, comunicar, entregar e trocar ofertas que tenham valor para clientes, parceiros e a sociedade em geral”. Somado ao trabalho de pesquisadores como Philip Kotler e de organizações como o The Chartered Institute of Marketing, é possível compreender o marketing como um conjunto de ações e estratégias que visam agregar valor, gerar interesse e atender às necessidades dos clientes.
A impossibilidade de uma definição permanente reflete o fato de o marketing estar ligado às dinâmicas da sociedade e do mercado, transformando-se à medida que o comportamento dos clientes muda (assim como o capitalismo em geral).
Em Principles of Marketing, Kotler e Armstrong resumem o marketing como o processo de “envolver e gerenciar relacionamentos lucrativos com os clientes”. O The Chartered Institute of Marketing, do Reino Unido, descreve a essência do marketing como a busca por entender o comportamento das pessoas. Quatro fases ajudam a entender as principais transformações no marketing, conforme a obra de Kotler:
- O marketing 1.0 é centrado no produto. Refere-se a bens e serviços que por si só representavam novidade, tendo o marketing como meio de divulgar suas funções e benefícios;
- Pós-revolução industrial, com a produção em massa diminuindo as diferenças entre produtos e serviços de uma mesma categoria, o foco deixa de ser o produto em si, mas o que ele representa. Nesta fase, o marketing 2.0 define o fortalecimento das marcas, o foco no consumidor e a segmentação de mercado;
- O marketing 3.0 representa o aprofundamento da criação de diferenciais simbólicos que distingam uma marca da outra. Em vez de vender produtos, passa-se a vender ideais e conceitos. É o período no qual a associação de valores às marcas é reforçada, as apresentando como solução para os problemas dos clientes e da sociedade;
- O marketing 4.0 é a evolução do 3.0 no contexto da digitalização da sociedade. Ele é um aprofundamento do marketing centrado no ser humano e busca atender às necessidades surgidas pelas experiências online.
Com o passar dos anos as práticas de marketing se tornam conhecidas pelos clientes e sua eficácia diminui. Em busca de diferenciação e de responder aos desejos e necessidades dos consumidores, novas práticas ganham espaço. Para fugir da cacofonia de anúncios, a criação de valor migra das mensagens exaltando os produtos para a criação de conteúdo que seja relevante aos (possíveis) clientes. Em vez de muitos anúncios de determinada marca em todos os meios possíveis, o apoio explícito a uma causa que seja importante ao público que se quer atingir, ou mesmo a contratação de pessoas que sejam influentes junto a esses mesmos grupos, por exemplo, passa a ser uma opção atraente como parte das estratégias de marketing.
Esse movimento é consequência (e, ao mesmo tempo, registra a queda) do que Seth Godin chama de “marketing de interrupção”. Durante um longo período, grande parte das ações de marketing se baseava em colocar suas mensagens entre o consumidor e algo que o interessasse, como anúncios durante a exibição de um programa de televisão, entre matérias em uma revista ou mesmo em outdoors para serem vistos no espaço público tanto durante passeios como no caminho para o trabalho. O marketing, nesse caso, interrompe algo de seu interesse para promover produtos. Para ampliar seu alcance é necessário investir cada vez mais dinheiro, gerar cada vez mais interrupções. O problema, no entanto, é que nossa atenção é limitada. Quanto mais anúncios, quanto mais interrupções, menos informação será absorvida e se transformará apenas em um “ruído de fundo” ao custo de muito dinheiro.
A atenção do consumidor é o alvo, agora ainda mais fragmentada por diversas mídias. Godin lembra que, durante décadas, programas televisivos de muita audiência e publicações impressas de grande circulação, por exemplo, eram ótimos veículos para o marketing de interrupção pois permitiam atingir quantidades enormes de pessoas ao mesmo tempo. Com a ampliação do alcance da internet, o declínio das mídias de massa promove a busca por diferentes formas de se destacar em meio ao enorme volume de informações disponíveis. A proposta de Godin é, em vez da interrupção, a permissão.
Quanto maior a desordem, quanto mais anúncios sendo exibidos e ampliando o “ruído de fundo”, mais efetivas são as ações que fogem da interrupção e apresentam valor ao consumidor.
Esse “mercado da atenção” não é novidade mas se potencializa com as redes sociais e a crescente digitalização do mundo, influenciando nossas vidas em todas as dimensões – desde a forma como consumimos e nos relacionamos até o debate político. A meta, então, passa a ser construir relacionamentos que tornem os consumidores mais propensos a receber novas mensagens da empresa e, assim, estabelecer uma relação de consumo a longo prazo. Isso se dá, por exemplo, por meio da criação de conteúdo que seja interessante ao público alvo e esteja relacionado ao ramo da empresa que se quer divulgar ou se vinculando a causas que sejam do interesse dos seus consumidores. Em meio a grande oferta de produtos e serviços disponíveis atualmente, buscar ganhar mais, mesmo vendendo para menos pessoas, através da fidelização de clientes que consumirão de forma crescente ao longo do tempo.
“Em outras palavras, elas (as empresas) acreditam ser mais inteligente focar em ampliar as vendas para uma pequena porcentagem dos atuais clientes do que encontrar novos”, escreve Godin no livro Marketing de Permissão – transformando desconhecidos em amigos e amigos em clientes (título CAFONA, mas que diz muito). Isso justificaria o risco de desagradar alguns clientes ao se posicionar acerca de temas com potencial de cisão, enquanto reforça laços com outros que se identificam com essas questões.
O interesse do marketing moderno não é somente conquistar clientes e fidelizá-los, mas também transformá-los em defensores das marcas. Para isso, provocar conflitos é importante. Na situação de ataque ou de posicionamento negativo à marca, seus defensores possuem maior espaço para atuar e manifestar seu comprometimento.
Em Marketing 4.0 – do tradicional ao digital, Kotler descreve essa prática tendo Starbucks e McDonald’s como exemplos das ações de amantes (lovers) e odiadores (haters):
O BrandIndex da YouGov revela um fato interessante. O McDonalds possui 33% de amantes e 29% de haters, uma polarização quase equilibrada. A Starbucks tem um perfil similar: 30% de amantes e 23% de haters. Do ponto de vista do Net Promoter Score, duas das maiores marcas do setor de alimentos e bebidas teriam notas baixíssimas porque têm odiadores demais. Mas, de um ponto de vista alternativo, o grupo de haters é um mal necessário que ativa o grupo de amantes a defenderem o McDonald’s e a Starbucks contra críticas. Sem a defesa positiva e a manifestação negativa, as conversas sobre marcas seriam sem graça e menos envolventes.
A dinâmica de conflitos e a potencial divisão entre amantes e haters se repete em diversos mercados. Pense em artistas como Juliette, Luísa Sonza, Anitta; em marcas como a Bis junto ao Felipe Neto; no festival Rock The Mountain e sua programação 100% feminina; nas ações da conversão explícita de Jojo Todynho à extrema direita.
A recepção de ações de marketing tidas como ativistas, por exemplo, irá variar conforme o nível de aceitação, por parte dos consumidores, das normas sociais confrontadas pelo ativismo em questão. Isso faz com que festivais musicais de estética alternativa, nos quais jovens formem grande parte da audiência, sejam propícios para a realização de ações ligadas a temas com potencial de controvérsia. Os jovens são mais abertos a novidades, definem tendências e são grandes agentes de transformação no mundo, posteriormente influenciando parcelas mais velhas da população.
Ponto ideal de conflitos
Assim como a necessidade de amantes e haters para aumentar a percepção de valor de marca, um consenso completo não é a situação ideal no marketing atual. As marcas criam valor para si mesmas a partir de pontos de paridade e pontos de diferenciação, distanciando-se dos competidores. Enquanto a congruência é utilizada para identificar como os consumidores percebem as marcas, ela não é suficiente para chamar a atenção e se diferenciar à medida que mais empresas aderem às mesmas práticas.
Pesquisas recentes demonstram a adesão dos consumidores às cobranças por posicionamento das marcas.
Elas indicam que o envolvimento com o ativismo e maior responsabilidade social por parte das empresas pode deixar de ser um diferencial para se transformar em uma prática comum, um ponto de paridade, portanto, assim como deixar de testar produtos em animais ou usar embalagens recicláveis passou a se tornar prática mais comum com o passar do tempo.
Ao optar por temas que sejam levemente incongruentes, que representem novos estímulos, o consumidor é tirado do seu lugar comum e precisa processar a informação que lhe é apresentada, resultando em maior potencial de engajamento. Ações de grande congruência entre marca e consumidor se destacam menos. O equilíbrio entre o que se espera da marca e um leve desalinhamento em torno dessa expectativa nas causas em que apoia levaria ao ponto ideal de ação. Essa incongruência planejada seria como não se comunicar apenas para as pessoas já convertidas, mas ampliar o escopo de ação, mantendo sua autenticidade.
A marca de sorvetes Ben & Jerry’s tem histórico de promover a sustentabilidade e direitos dos animais, sendo vista como uma marca progressista. Ao longo dos anos, evoluiu seu apoio às causas LGBTQIA+ e, mais recentemente, passou a combater o racismo no sistema criminal estadunidense. No Brasil, um exemplo poderia ser uma empresa como a Natura, que se posiciona como uma empresa com o propósito de respeitar a natureza e os direitos humanos e valoriza a inclusão e a diversidade, passar a se posicionar explicitamente contra a violência contra a mulher.
São pequenas variações dentro de um escopo maior de atuação que desafiam normas sociais em prática, mas mantém conexão com o histórico de posicionamento das empresas acerca de questões sociais.
Um exemplo prático no mundo dos festivais de música é o espanhol Primavera Sound. Em 2011, durante um show do Pulp no festival, foi lido um comunicado sobre o despejo de milhares de pessoas que estavam acampadas protestando na Plaça Catalunya e, em 2014, permitiram que manifestantes entrassem e distribuíssem panfletos sobre violência policial executada contra os participantes de uma ocupação em Barcelona1. Já nas redes sociais do evento, a primeira manifestação do tipo ocorreu em 20 de setembro de 2017, quando o festival publicou em sua página no Facebook uma mensagem de apoio aos manifestantes que foram às ruas em defesa do referendo sobre a independência da Catalunha. Publicado em espanhol, catalão e inglês, o comunicado dizia o seguinte:
O Primavera Sound não pode e não quer se calar sobre os eventos que aconteceram nos últimos dias na Catalunha e especialmente hoje em Barcelona, a cidade que acolhe o festival. É por isso que queremos manifestar publicamente nosso apoio a todas as instituições, entidades e pessoas que durante essas últimas horas estão sofrendo essa agressão a seus direitos civis mais fundamentais.
Primavera Sound, 2017, tradução própria
À parte de ideologias e preferências políticas, nós no Primavera Sound condenamos todas as ações que impeçam o livre e pleno exercício desses direitos democráticos e pedimos a todos aqueles que se sentem ofendidos a tomar uma posição serena, cívica e pacífica. Hoje nos mantemos unidos.
Levaria pouco mais de um ano até que o Primavera Sound se envolvesse novamente em uma questão de teor social e que gerou divisões entre sua audiência. Dessa vez, no entanto, seria uma decisão que influenciaria todo o conceito do festival e de suas edições pelo mundo. Em dezembro de 2018, o festival anunciou sua programação musical para 2019, com igualdade de gênero entre artistas e guiada pelo lema “o novo normal”. No mesmo ano, participaram de um programa junto à Prefeitura de Barcelona e outros produtores culturais locais contra assédio sexual nas casas noturnas e espaços de lazer chamado No Callem. O tema seria aprofundado em 2019 com o programa Nobody is normal (“ninguém é normal”) e publicações em seu site e perfis em redes sociais. Um post no Instagram em 16 de maio de 2019 explicou do que se tratava: “É uma ação para aumentar a conscientização e tomar precauções contra agressão e assédio às pessoas que enfrentam estereótipos de gênero. O desafio é justamente que isso não deveria mais ser um desafio: cada pessoa define sua própria norma”.
São ações que dialogam com o histórico do evento e podem ser consideradas autênticas, ao mesmo tempo em que não representam rupturas completas dentro das normas vigentes. Enquanto parte do público escrevia comentários online como “algumas coisas devem ser definidas pela meritocracia ou iremos para um futuro sem graça e pouco inspirador” e “vocês não estão promovendo igualdade de gênero completando os espaços da programação com qualquer artista feminino só para chegar em 50%. A qualidade é o que importa” 🙄, outra grande parcela do público se identificou com as ações e tiveram seus vínculos reforçados. O resultado foi o posicionamento do festival na vanguarda do assunto, influenciando outros festivais a fazerem o mesmo, e uma base de amantes do festival muito mais ativa do que os haters.
Outro ponto que reforça a autenticidade das ações, nesse caso, foi que, ao divulgar sua programação de 2020 (não realizada em decorrência da pandemia de Covid-19), o festival manteve o compromisso em programações igualitárias e que não estavam “destacando isso mais (a igualdade de gênero entre os artistas selecionados) porque para nós o novo normal é simplesmente normal”, conforme post em seu perfil no Twitter. Um reforço da coerência em seu posicionamento e de que não se tratou de uma ação pontual, mas de uma mudança estrutural em diálogo com o conceito de autêntico ativismo de marca, em contraponto a um oportunismo passageiro a partir de uma pauta de interesse público (woke washing).
Resumidamente: desconfie de toda e qualquer pessoa/marca que exalte muito suas ações sociais, seu ativismo, pois há grandes chances de se tratar de apenas mais um instrumento de marketing e não uma ferramenta real em busca de transformações.
(numa mesa de bar posso contar diversos casos de festivais brasileiros que publicam cartas ridículas e vídeos sentimentais sobre a energia que promovem mas, na prática, são apenas as velhas sanguessugas atuando no meio cultural se passando por ativistas de Instagram)
Aqui, vale relembrar o que Moorman (2020) escreve sobre os assuntos abordados pelo ativismo de marca. Ela destaca que alguns temas são mais atraentes para as empresas por não serem vistos necessariamente como políticos, mas como de interesse público. A resposta, então, irá depender do quão enraizada na sociedade estiverem as mudanças de comportamento abordadas pelas pautas em questão. Ou seja, a igualdade de gênero poderia ser considerada um assunto divisivo, porém mais bem aceito pelo mercado e pela sociedade, apoiado em seu apelo midiático e no sucesso comercial do feminismo capitalista, do que abordar o racismo e classismo de programadores e produtores de festivais, por exemplo.
Se a mensagem do marketing não divergir das normas sociais ligadas ao público-alvo, nem da reputação da marca e de seu histórico de atuação, o resultado poderá ser a satisfação da audiência, porém sem grandes manifestações à favor ou contra. Quando o público identifica uma grande divergência que ameace suas crenças ou normas em vigor, o resultado pode ser a indignação. Agora, se for alcançado o equilíbrio entre propósito, histórico de atuação e moderada incongruência entre expectativas e a mensagem apresentada, o público pode interpretar a mensagem como uma violação positiva das normais sociais. Esse seria o ponto ideal do conflito, resultando em diferenciação, reconhecimento de marca e fidelização junto às pessoas que se identificarem com a mensagem.
notas
algumas referências deste artigo:
Godin, S. (1999). Permission marketing: turning strangers into friends, and friends into customers. Simon & Schuster.
Kotler, P., & Armstrong, G. (2018). Principles of marketing. Pearson Education Limited. Kotler, P.,
Kartajaya, H. & Setiawan, I. (2017). Marketing 4.0 – do tradicional ao digital. Sextante.
Moorman, C. (2020). Commentary: Brand Activism in a Political World. Journal of Public Policy & Marketing, 39(4), 388–392. https://doi.org/10.1177/0743915620945260
Vredenburg, J., Kapitan, S., Spry, A., & Kemper, J. A. (2020). Brands taking a stand: authentic brand activism or woke washing? Journal of Public Policy & Marketing, 39(4), 444–460. https://doi.org/10.1177/0743915620947359
[1] Informações obtidas junto à assessoria de imprensa do Primavera Sound.