marketing, influência e como mudanças acontecem

pt. 1 _ autoridade velada

Para seu melhor funcionamento, o marketing demanda que estruturas culturais estejam em alinhamento com o mercado, de forma a tornar possível o entendimento das ofertas em questão e viabilizar a interação entre marcas e indivíduos. Em confluência com o que Baudrillard escreve sobre a distinção por meio do consumo, Douglas B. Holt define, no artigo Why Do Brands Cause Trouble? A Dialectical Theory of Consumer Culture and Branding, a cultura do consumo como “a infraestrutura ideológica que sustenta o que e como as pessoas consomem e define as regras básicas para as atividades de branding dos profissionais de marketing”. Para o autor, a cultura do consumo moderna se baseia na obediência à autoridade cultural exercida pelo marketing, levando à organização dos gostos das pessoas conforme os interesses corporativos. Citando Horkheimer e Adorno, Holt afirma que

a cultura do consumo neutralizou a oposição política ao reestruturá-la como gosto.

Esse processo se baseia na premissa de que o consumo define as identidades sociais de forma que existam identidades que satisfaçam os desejos de participação política e social da população. O resultado seria uma “comoditização” da politização, sustentada pela segmentação de mercado que atua como um mecanismo de dominação.

Adaptado ao contexto dos festivais musicais, seria como interpretar a escolha por eventos que representem os ideais políticos de um indivíduo como uma resposta à sua demanda por participação política, uma extensão de sua atuação nesse campo.

Holt destaca dois pontos dentro do que chama de “paradigma das marcas” – os princípios na forma como as empresas constroem suas marcas.

Primeiro, elas disputam para agregar valor aos seus produtos, indo aos extremos, dentro das estruturas culturais vigentes, em busca de diferenciação.

Em segundo lugar, os consumidores buscam produtos que atendam às demandas mais valorizadas em seus grupos sociais.

No processo de exposição recorrente, as pessoas se tornam mais conscientes das práticas de marketing e seus mecanismos, tornando-as menos eficazes. Com as companhias atuando mais agressivamente em busca de diferenciação e os consumidores mais bem informados sobre as estratégias de convencimento, as ações de marketing têm perda de eficácia. “Empresas e consumidores, partindo dessas experiências em busca de seus diferentes interesses, se engajam em um processo de seleção coletiva por meio do qual uma nova cultura de consumo e um novo paradigma de marca se tornam institucionalizados”, escreve Holt. Para o autor, constrói-se, então, um cenário propício para a atuação de músicos, cineastas e outros artistas em geral, que utilizam as tensões surgidas como terreno para a expressão criativa. “Seus produtos culturais acentuam essas tensões ao interpretá-las e torná-las mais viscerais para o público”, afirma. A fala de Loredana Sarcinella, diretora sênior de marketing da divisão de dispositivos móveis da Samsung, sobre a participação da empresa como uma das patrocinadoras da edição brasileira do festival Lollapalooza em 2019, vai ao encontro dessa afirmação: “A música é a forma mais poderosa de nos conectarmos com os millennials e Geração Z. Ela ativa a memória e toca no coração das pessoas”.

Enquanto o consumo ganhava força como instrumento na construção das identidades individuais na segunda metade do século 20, as marcas que fossem claramente percebidas como “engenheiras culturais” eram menos atraentes para os consumidores, conforme Holt. No entanto, isso não impediu que as marcas se tornassem ainda mais cruciais nas vidas das pessoas. Em Speaking of fashion: consumers’ uses of fashion discourses and the appropriation of countervailing cultural meanings, Diana Haytko e Craig Thompson escrevem sobre como a consciência do poder exercido pelo marketing na construção dos gostos transformou-se em uma ficção utilizada pelas pessoas para se apresentarem como consumidoras soberanas em pleno poder de suas decisões e não vítimas da influência das grandes marcas e seus interesses corporativos. Para se apresentar como independente e soberano, porém, seria necessária a validação alheia, resultando em um processo de socialização construído em torno de marcas e pessoas que compartilham de códigos culturais semelhantes, conforme analisado por Albert Muniz e Thomas O’Guinn no artigo Brand Community.

Na contracultura da década de 1960 Thomas Frank vê um marco na transformação das estratégias de marketing. Esse é um dos pontos discutidos em seu livro The Conquest of Cool: Business Culture, Counterculture, and the Rise of Hip Consumerism.

Como os ideais de liberdade e independência iam contra a ideia de controle corporativo, para se adaptar à cultura de consumo pós-moderna era preciso se apresentar como parte da cultura, como autênticos elementos de construção de identidade. Isso era necessário para que as ações de branding tivessem efetividade em um mundo no qual a autoridade do marketing para moldar a vida cotidiana passava a ser questionada.

O consumo de marcas consagradas como forma de distinção diminuiu até que, na cultura pós-moderna, cresceu a aversão à influência do branding ao mesmo tempo em que o espaço para alternativas menores, individualizadas, aumentava (tema presente em outro artigo de Holt, Does cultural capital structure american consumption?).

“Para serem autênticas, as marcas devem ser desinteressadas; devem ser percebidas como inventadas e disseminadas por grupos sem uma agenda econômica instrumental, por pessoas que são intrinsecamente motivadas por seu valor inerente”

Holt, 2002.

O que levou a uma forma de as empresas exercerem sua autoridade de forma não aparente, ligada ao que Holt chama de stealth branding, algo como uma influência discreta, indireta, em vez de anúncios publicitários explícitos. “As empresas buscam a lealdade dos formadores de opinião que usarão sua influência para difundir a ideia de que a marca da empresa tem valor cultural (ou seja, é cool)“, resume Holt. A tentativa de ser parte da cultura pode ser observada nos patrocínios culturais que vão além dos naming rights e exposição de logomarcas em banners e também na onipresente figura dos influencers digitais populares em redes como Instagram e Tik Tok.

Alguns dados, no entanto, apontam para uma mudança na percepção pública em relação ao marketing por meio de influenciadores e levantam questionamentos sobre sua autenticidade e confiança. Segundo a consultoria Protein, o modelo vigente nas décadas de 2000 e 2010 consistia nas marcas criarem os conceitos para suas campanhas/produtos e, em seguida, buscarem pessoas influentes junto ao seu público-alvo. Em um segundo momento, os influenciadores eram pagos para comunicar às suas audiências a mensagem das marcas. Finalmente, o consumidor teria sua opinião sobre aquela marca/produto moldada pela figura do influenciador, que ocupa uma posição aspiracional a qual é cobiçada por seus seguidores, que, enfim, comprariam o conceito/produto. Uma relação hierárquica, linear e guiada pelo capital, conforme destacado pela Protein em seu relatório Dirty Words – Influence. A figura abaixo traz a representação gráfica dessa relação.

ecosistema de influência linear
Ecossistema linear de influência

Com o avançar do tempo, os indivíduos passaram a compreender esse mecanismo de marketing, que então deixou de soar como espontâneo e orgânico, perdendo parte de sua efetividade e também sua legitimidade. O início do século 21 foi um período no qual a busca por diferenciação por meio de experiências, marcas locais e termos como “artesanal” ficaram em evidência, se popularizando até o ponto de saturar e gerar uma “fadiga de autenticidade”, no termo utilizado pela Protein. O excesso de ações superficiais dentro desse contexto (como woke washing e greenwashing) levou a dúvidas quanto à autenticidade do marketing de influência como uma alternativa que funcione dentro da perspectiva de se distanciar da persuasão explícita da publicidade. O poder de influência passaria, então, a alternar dos grandes influenciadores para pessoas que tenham funções de destaque e sejam influentes em comunidades específicas. Conforme apresentado em pesquisas recentes (Edelman, 2021; Protein, 2021), as pessoas confiam mais em seus pares do que em qualquer organização. A influência alinhada à autenticidade, portanto, é efetiva quando acompanhada de ações coerentes com o conceito e os valores que permeiam a mensagem. O marketing de influência linear, de via única, é substituído por um no qual conceito e capital circulam entre empresas e a comunidade.

ecossistema não linear de influência
Ecossistema não-linear de influência

Um dos participantes da pesquisa da Protein diz que “os produtos costumavam ser aspiracionais mas agora são ideias e visões que são cobiçadas, isso é muito mais intangível”. Nesse sentido, as marcas passam a representar também uma consciência de responsabilidade coletiva, além de capital cultural. E quando pensamos em marcas, podemos também pensamos em festivais de música, mesmo que atuantes em nichos bem definidos. “O desejo de expressar valores pessoais é muito mais importante do que o desejo de autoexpressão”, é a conclusão da Protein em sua pesquisa sobre influência. No fim da segunda década do século 21, outra mudança comportamental que se fortalece, segundo a consultoria WGSN, é a de as pessoas repensarem seus modos de consumo de forma a valorizar mais a saúde mental e física, transformando o bem-estar em uma moeda de influência e de capital social mais importante entre os millennials do que a exibição pública de riqueza (por meio de bens materiais).


pt. 2 _ isomorfismos e como as mudanças acontecem

Isomorfismo se refere ao processo de similaridade entre elementos que compartilham o mesmo ambiente e, para autores como Paul DiMaggio e Walter Powell, pode ser dividido entre o isomorfismo competitivo e o institucional.

ISOMORFISMO COMPETITIVO e INSTITUCIONAL

O isomorfismo competitivo diz respeito a medidas de adequação entre concorrentes, como a adoção de inovações e mudanças de nicho, e se destaca em campos onde a competição ocorre de forma mais livre, enquanto o isomorfismo institucional refere-se a mudanças mais abrangentes, quando uma empresa copia modelos ou processos de outra empresa. Essa visão seria importante para entender como empresas e marcas se adaptam às mudanças em seu entorno, sendo influenciadas não apenas por fatores sociais e econômicos, mas por seus pares corporativos. “As principais forças que as organizações devem levar em consideração são as outras organizações”, escreveu H. Aldrich em 1979. As marcas não competem somente por clientes e recursos, mas também por poder político, legitimação institucional e adequação social. Os autores identificam três mecanismos por meio dos quais ocorrem as mudanças isomórficas institucionais.

Isomorfismo coercitivo

O isomorfismo coercitivo resulta de pressões formais ou informais que podem ter origem nos governos, em outras empresas com as quais se relacionem de alguma forma ou pelas “expectativas culturais da sociedade em que as organizações atuam”, nas palavras de DiMaggio & Powell. As empresas podem ter que atender a uma nova lei federal, por exemplo, significando que em relação a essa temática específica, todas agirão de forma semelhante. Em outro caso, podem responder a uma demanda da sociedade por mais diversidade em seus quadros profissionais e passarem a criar mecanismos de contratação de pessoas de grupos minorizados.
Nos festivais de música é bem fácil perceber esse conceito na prática. Meia-entrada e rampas de acesso para cadeirantes são exemplos com origem em governos, enquanto a cobrança por lineups menos desiguais em termos de raça e gênero dos artistas têm origem em cobranças por parte do público.

Isomorfismo mimético

Frente a incertezas simbólicas, dúvidas e problemas de difícil resolução, copiar outras empresas pode ser uma solução. O isomorfismo mimético ocorre quando as organizações imitam outras que sejam percebidas como bem-sucedidas e tenham destaque em suas áreas de atuação. A imitação ocorre não pelo fato de os modelos copiados terem eficácia comprovada, segundo DiMaggio & Powell, mas por serem percebidos como eficazes dentro de arranjos estruturais que envolvem a autoridade das organizações copiadas e pela universalidade de processos de cópia. Destaca-se, ainda, o papel do isomorfismo mimético na inovação. “Há aqueles que, em suas tentativas imperfeitas de imitar os outros, inovam inconscientemente por meio da aquisição involuntária de atributos únicos inesperados ou não procurados”, escreve o economista Armen Alchian.
Quando um grande festival como o Primavera Sound passa a montar lineups com a mesma quantidade de artistas masculinos e femininos, por exemplo, ele se diferencia de outros eventos cujas programações são majoritariamente formadas por homens e passa a exercer uma pressão sobre outros festivais. Primavera Sound, Pitchfork, Unsound e Nyege Nyege são festivais tidos como referência em suas áreas de atuação e suas ações refletem nas práticas de outros eventos pelo mundo.

Isomorfismo normativo

O isomorfismo normativo está ligado à profissionalização. Para DiMaggio e Powell, as categorias profissionais sofrem pressões miméticas e coercitivas, assim como as empresas. Mesmo que cada profissional apresente suas singularidades, suas atribuições e comportamentos são semelhantes às dos seus pares em outras organizações. As semelhanças dos profissionais também seriam definidas pela educação formal e pela legitimação dos especialistas atuantes em cada área, que criam uma base cognitiva compartilhada, e pelas redes profissionais que vão além das companhias e reúnem pessoas que trabalham em áreas congêneres.
Quando profissionais de produção, comunicação e gestão, por exemplo, trabalham em diferentes festivais, conhecimento e prática adquiridos em cada evento são compartilhados entre diferentes equipes, resultando em transformações ou reforço de comportamentos e práticas.


Ao retratar os mecanismos que envolvem o branding, Naomi Klein escreve que “as empresas que procuram formar identidades de marca que se enredarão perfeitamente com o zeitgeist compreendem que, como escreveu Marshall McLuhan, ‘quando uma coisa é popular, ela cria popularidade'”. O que, de forma resumida, representa que aquelas que forem vistas como líderes serão copiadas e influenciarão seus segmentos.

Como exemplo, podemos vislumbrar um processo no qual primeiro a sociedade cobra festivais e as empresas em geral por maior responsabilidade social e engajamento em questões de interesse público (isomorfismo coercitivo). Em busca de diferenciação e melhor posicionamento de marca, os festivais (assim como marcas) respondem a essa demanda, tendo vantagem aqueles que atuam junto ao público jovem, mais aberto a mudanças e criadores de tendências. Nesse sentido, festivais musicais com abertura para a inovação e experimentação estariam ainda mais propícios a serem bem-sucedidos nesse tipo de ação, tendo em vista o perfil de público atingido e o potencial da música em criar a partir de cenários de tensão.

Diante das transformações sociais e econômicas do início do século 21 e as mudanças de comportamento junto do aumento do poder aquisitivo de millennials e da Geração Z (conforme entram e se desenvolvem no mercado de trabalho), festivais/empresas/marcas copiariam seus pares de maior autoridade e influência como forma de se adaptar aos novos cenários (isomorfismo mimético). Em outra etapa, a circulação dos profissionais envolvidos nessas ações por outras empresas, assim como a difusão do conhecimento no ambiente profissional (isomorfismo normativo), faria com que essas práticas fossem integradas à cultura corporativa e replicadas em outras ações futuras.

notas

imagem da capa: Protein (adaptado por mim).

Algumas das referências utilizadas neste texto:

Aldrich, H. (1979). Organizations and environments. Prentice-Hall.

DiMaggio, P. J., & Powell, W. W. (2005). A gaiola de ferro revisitada: isomorfismo institucional e racionalidade coletiva nos campos organizacionais. RAE-Revista de Administração de Empresas, 45(2), 74-89.

Edelman (2021). 2021 Edelman Trust Barometer confiança no Brasil + Global. Edelman.

Holt, D. B. (1998). Does cultural capital structure american consumption?. Journal of Consumer Research, 25 (June), 1–25.

Holt, D. B. (2002). Why Do Brands Cause Trouble? A Dialectical Theory of Consumer Culture and Branding. Journal Of Consumer Research, 29(1), 70-90.

Protein Agency (2021). Dirty words – influence. Protein Agency.

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